quinta-feira, 7 de abril de 2016

Vítimas e predadores

Eva Anadón Moreno, a activista espanhola expulsa de Moçambique.

Na mesma semana em que somos confrontados com a notícia de que uma operadora ferroviária alemã decidiu criar carruagens exclusivas para mulheres nalguns comboios, recebemos a notícia da extradição por parte das autoridades moçambicanas de uma cidadã espanhola, na sequência de uma acção de rua contra um decreto governamental que proibe o uso de saias curtas por parte das estudantes em Moçambique. Que conexão existe entre estas duas notícias? Em ambas, a justificação:  “para as proteger”!

A velha narrativa do sexo forte e do sexo fraco vem logo ao de cima. A ideia de que os fracos (neste caso é mesmo as mulheres e as meninas) se devem proteger dos perigos. E logo nos lembramos de burkas, de véus, de corpos totalmente ocultados e pensamos que isso é lá longe, em países distantes e culturas atrasadas. Na Índia, no México, no Japão ou no Brasil como forma de prevenir as mulheres de agressões sexuais são frequentes carruagens exclusivas para mulheres. Isso é lá, aqui na Europa nem pensar!

Insidiosamente, vai-se instalando o medo e os resquícios securitários vão ganhando contornos cada vez mais explícitos. Ao invés de se investir em políticas de igualdade, de educação para a promoção de direitos desde criança, responde-se com políticas absurdas ao arrepio da história: penalização das vítimas em vez de empoderá-las; maior liberdade para os predadores continuarem a agir, em vez de criminalizá-los.

A segregação e a guetização são contranatura e em contraciclo com a história da Humanidade. Rosa Parks naquele 1 de Dezembro de 1955 levantou a voz para recusar dar o seu lugar no autocarro a um branco. Foi o começo dum processo contra a segregação racial nos EUA no qual Martin Luther King teve um papel destacado como líder, mas foi uma simples costureira no regresso a casa depois de um dia de trabalho que fez mexer o status quo. O movimento vigoroso que se seguiu naquele país aboliu o apartheid que proibia brancos e negros de frequentarem os mesmos espaços, de utilizarem os mesmos serviços. Na África do Sul a luta de Nelson Mandela foi também contra o odioso regime de apartheid e a sua luta abnegada faz parte do património da evolução da história da Humanidade no seu caminho pela liberdade e contra o preconceito.

A história das mulheres e das feministas é um longo caminho feito de perseverança e de muita luta e inscreve-se também nesse património da história da Humanidade em busca da Igualdade e da Liberdade. As mulheres não querem ser excluídas nem tratadas como menores que precisam ser protegidas por alguém ou de algum perigo exterior. Querem ser tratadas como iguais, querem ter liberdade para desenvolverem as suas potencialidades, querem decidir sobre os seus destinos, sobre a sua vida. Querem ser cidadãs; não querem ser vítimas. Por isso têm lutado e continuarão a fazê-lo.

O direito à segurança para todos e todas é um direito básico. Andar na rua a qualquer hora do dia ou da noite sem medo de ser molestada porque se é mulher; andar em transportes públicos sem medo de ser abusada ou agredida sexualmente porque se é mulher; frequentar livremente um espaço público sem receio de ser incomodada; ser livre de vestir a roupa que entender sem receio de ser julgada ou agredida por alguém que se acha superior e com direito a julgar ou a gredir porque é homem! Por isso, carruagens exclusivas para mulheres Não e Não! Espaços próprios e “seguros”  para mulheres em parques de estacionamento Não e Não! Nem na Europa nem no resto do Mundo!

Volto ao princípio do que escrevi. Eva Anadón, uma mulher espanhola a trabalhar com o Secretariado Internacional da Marcha Mundial das Mulheres em Maputo foi presa pelas autoridades moçambicanas na sequência de um teatro de rua em que se insurgia contra o decreto governamental que proibe as alunas de usarem saias curtas. Posteriormente, foi expulsa de Moçambique apesar de estar legalmente a trabalhar no país, o que é de uma enorme violência e arbitrariedade. Que crime cometeu Eva Anadón? O lutar contra o controlo dos corpos? O lutar pela emancipação das mulheres e pelo seu empoderamento? Lamentavelmente, as autoridades nada fazem contra o descarado e abusivo assédio e violência machista nos “chapas” ou nos autocarros em Maputo, reprimindo os abusadores sexuais que toda a gente sabe que existem e que actuam impunemente. Como escreveu Eva Anadón, “ A forma de parar com o assédio sexual nas escolas nao é controlar o comprimento das saias!!!! É fazer cumprir a lei e criminalizar os agressores!!!! Basta de controle dos nossos corpos!! Chega de criminalizar as mulheres pela violência que elas próprias sofrem!!!”.

Afinal, enquanto os predadores continuam à solta, protegidos pelo Estado com leis e espaços de exclusão, as vítimas terão que continuar a lutar para deixarem de ser violadas, molestadas, assediadas, maltratadas, abusadas, agredidas, injuriadas, silenciadas, segregadas, presas, discriminadas, assassinadas. Porque o estatuto delas não é de vítimas, mas de mulheres que querem ser livres.
Almerinda Bento - UMAR
 
Publicado na página IGUALDADE XXI no Jornal Diário Insular de 7 de Abril de 2016
 

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